segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A Lenda do Bem e do Mal

Era uma vez um reino em que havia dois príncipes irmãos. O rei, pai destes, desde o começo de suas infâncias, sempre os levava junto a si para que conhecessem outras terras. Após tornarem-se adultos, ambos costumavam lembrar-se destes momentos de proximidade com carinho. Porém apenas um destes príncipes era destinado a suceder o rei, enquanto o outro, mais jovem, embora gozasse da generosidade do irmão, sabia que haveria um momento em que precisaria curvar-se a ele, submetendo-se, e isso o consumia interiormente. Mesmo amando o irmão, não conseguia aceitar que um dia este seria maior que ele.

Aconteceu do pai vir a falecer e nova coroação se sucedeu, de forma que o irmão mais velho passou a ocupar o palácio que antes fora de seu pai. Além disso, o novo rei havia contraído matrimônio, sendo sua esposa bela e virtuosa. Já nos anos iniciais de seu reinado nasceram três filhos e o reino prosseguia cada vez mais próspero.

O irmão invejoso, embora contasse com um importante título de nobreza e continuasse tendo livre acesso à corte, consumia-se ainda mais em sua inveja, até que esta igualou e superou o amor que tinha pelo novo rei, seu irmão. Não tinha descendentes, nem tampouco tinha contraído matrimônio. Toda a alegria que o rei percebia tornava ainda mais negra a sombra que existia em seu coração, ocultando cada vez mais a luz dentro de si, até que esta se tornou imperceptível. Há muito tempo dominava a arte da magia negra à qual se dedicava em segredo, impulsionado pelos sentimentos malévolos que não conseguia conter dentro de si. A princípio, quando começou a enveredar-se por esta arte, julgava ser por mera curiosidade, mas então começou a vislumbrar possibilidades práticas em que poderia utilizá-la contra seu próprio irmão.

Elaborou então, cuidadosamente, os detalhes do ritual que utilizaria. Não lhe foi difícil ter acesso aos objetos pessoais do rei para que pudesse criar um feitiço, pois contava com sua confiança. O essencial para que a maldição fosse completa seria que, no momento que estivesse rogada, o fosse com o desejo mais negro. Assim escondido, durante a noite, deu início à sua vingança, amaldiçoando o irmão.

No entanto, durante o ato negro, a pequena luz que existia ainda dentro de seu coração fez-se revelar, mesmo que tênue. Pensou: “Tudo que meu irmão criou é tão belo. Quero possuir esta beleza.”, e depois envergonhou-se, acrescentando: “Que jamais eu, ou qualquer outra pessoa, possa destruir a beleza que meu irmão criou”. As trevas voltaram então a seus pensamentos. O resultado do ato praticado não seria imediato. De fato, um ano inteiro deveria se passar para que seu intento começasse a se realizar.

Passado um ano, o rei estava então ocupado ensinando seus filhos a plantar novas sementes dentro de uma estufa recém construída. Estava entretido e feliz. O dia inteiro havia se concentrado em assuntos que sua posição exigia e o único tempo que havia encontrado para dedicar-se aos filhos foi durante a noite. Mas não se importava. Este tipo de atenção não lhe cansava. Foi quando o teto da estufa desabou, de forma que o rei ficou preso entre os escombros. Não estava ferido e seus filhos estavam a salvo, mas sentia a massa ainda úmida da construção em contato com seu rosto, com seu tronco e com seus braços. Três dias foram necessários para tirá-lo dali. Enfim solto, percebeu a massa irremediavelmente presa à própria pele. Não havia como removê-la sem retirar a pele. Sua aparência seria, desde então, monstruosa.

O irmão mais novo regozijava-se com o infortúnio do rei, pois sabia o que se seguiria. Com o passar do tempo a rainha, mesmo sendo virtuosa, não conseguia mais olhar para seu próprio marido. O mesmo aconteceu com os filhos. O rei, em desespero, abandonou seu reinado e passou a andar pelas ruas disfarçado como mendigo. Como havia desaparecido, o irmão o substituiu no castelo, seduzindo a rainha e ganhando até mesmo a confiança dos novos príncipes.

Enquanto isso a luz no coração do rei diminuia devido à amargura que sentia dentro de si, ao ver seu irmão ao lado da rainha e de seus filhos. O ódio começou a consumi-lo. Mas o feitiço do irmão invejoso não havia sido perfeito: “Que jamais eu, ou qualquer outra pessoa, possa destruir a beleza que meu irmão criou.”. Ora, esta beleza começava exatamente no coração do rei. Tudo o que havia criado era fruto de seus sentimentos, os quais foram nutridos carinhosamente. Naquele momento seu coração estava se tornando negro.

Era noite e a estufa que havia desabado continuava inalterada. As sementes que haviam sido plantadas estavam germinando e crescendo, revelando-se além do solo. A pouca água que havia disponível tinha sido o suficiente para conceder-lhes vida. Naquele mesmo momento a massa presa à pele do rei começou a desprender-se e uma nova esperança preencheu seu coração. Voltou ao castelo, mesmo em andrajos. Ainda assim, todos o reconheceram. A rainha, arrependida, acolheu-o em prantos, da mesma forma que seus filhos. O rei perdoou verdadeiramente a toda sua família.

O irmão invejoso, envergonhado, fugiu. Somente isto era motivo de tristeza ao rei. Porém, consumido pela culpa, o irmão retornou e confessou o mal que havia causado. O rei, percebendo a dor no coração do irmão, perdoou-o, também verdadeiramente. O perdão foi tão pleno que o mal praticado foi totalmente esquecido.

Esta é a lenda do bem e do mal. Infelizmente como o mal foi esquecido, este sempre retorna de tempos em tempos, mas a luz do bem jamais é extinta por completo.

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Fica aqui uma reflexão. O bem e o mal existem no coração de todos os seres. Não existem seres do bem, nem seres do mal. Existe apenas uma dinâmica que sempre se repete.

domingo, 8 de setembro de 2013

O Que Está Dentro é Como o Que Está Fora

Estou retornando de minha pausa em relação ao blog (reconheço, bem antes do que havia imaginado). Por mais que haja objetivos pessoais concorrentes com os quais preciso lidar, não consigo ficar tanto tempo sem escrever (velhos hábitos nunca mudam). A verdade é que já comecei a aprender alguns macetes para administrar melhor meu tempo, sendo que um deles (mas não o único) é tornar a frequência com que escrevo um pouco mais flexível e mais espaçada (foi o que acabei fazendo para compor este post, aproveitando um esboço que já havia começado e desenvolvendo-o quando tive tempo disponível). Assim, ao invés de escrever semanalmente, eu vou fazê-lo mais ou menos mensalmente (precisarei controlar meu impulso de sempre querer rever e acrescentar algo quase que de imediato). Desculpem-me por meu post anterior (Uma Pausa) ter sido tão dramático. Afinal, como ser humano, às vezes eu também faço algumas “tempestades em copo d’água” (e armo alguns barracos também, em situações mais práticas, às vezes). 

Como resultado colateral desta mudança de ritmo, vou levar muito mais tempo lhes contando minha história pessoal no caminho da magia. Mas, na realidade, não tenho pressa e sempre considerei mais interessante apreciar o caminho do que simplesmente chegar aos objetivos pretendidos. As histórias vêm daí, dos caminhos. 

Volto então ao tema da goécia (que iniciei no post Goécia: Refletindo Sobre o que Marginalizamos no Inconsciente). Vamos lá… Certa noite sonhei com uma demônia. Demônia, mas não que tivesse algum defeito na aparência ou que inspirasse algo de desagradável. Na verdade era atraente e invulgar. O conhecimento de que se tratava de uma demônia estava implícito, já em minha mente, sem que tivesse sido comunicado claramente no sonho.

Ela fez uma proposta a mim. Demônios sempre fazem propostas. Normalmente nós temos aquele velho chavão “pacto com o demônio”, e talvez haja algo de verdadeiro nisto, porém normalmente trata-se de exagero. O que eles propõem é usualmente um trato, pura e simplesmente, e quase sempre sem aquela conotação de coisa eterna, para sempre.

No caso, ela propunha me ajudar a entender as pessoas. Ela disse que poderia revelar-me o que realmente motiva os seres humanos, por detrás da aparência das palavras, e por detrás até mesmo da fachada do que alguns acreditam ser suas verdadeiras razões. Segundo ela, assim eu poderia agir com segurança diante do que surgisse diante de mim no dia-a-dia. Não me propunha coisa alguma em troca. Enfim completou: “Então, o que acha dessa ideia?”. Eu não respondi nem com um “Sim”, nem com um “Não” e o sonho terminou assim, com um desfecho em branco.

O leitor pode considerar com uma certa estranheza esta narração que aqui estou expondo. A ideia de perceber o que as pessoas escondem (até mesmo de si mesmas), tendo acesso a algum tipo de informação (sobre a qual não se supõe que deveríamos ter) causa, em geral, uma certa repulsa. Afinal não gostaríamos que fizessem isso conosco. Não gostaríamos que as pessoas soubessem (com um alto grau de certeza) do que realmente pensamos a respeito delas, do mundo, de nossas estratégias. Acreditamos que devemos ocultar-nos, seja para sermos melhor aceitos, seja para nos protegermos. A proposta da demônia, portanto, fere este instinto de ocultação.

No entanto, nos aprofundemos nesta proposta. Consideremos que há duas formas de se conhecer as motivações das pessoas (sem que perguntemos diretamente a elas). A primeira é olhando para dentro de nós mesmos e verificando como reagimos às pessoas, porque sabemos que os efeitos que sentimos interiormente podem corresponder a causas exteriores. Como se o exterior tivesse (e tem) ramificações dentro de nós. É a noção de que somos interligados e que, justamente por isso, não existem segredos de fato.

A segunda forma é pela via inversa. Explico: se somos interligados uns aos outros, toda nossa expressão é transmitida (para outros) e recebida (por outros), em virtude de nos comunicarmos. Dessa maneira temos raízes nas demais mentes (ramificações de nós mesmos em tudo o que nos é receptivo). Por este motivo (e em certa medida) o universo corresponde ao que esperamos dele (equivale a saber como o universo se sente tendo como base como nós mesmos nos sentimos). Entretanto, em tal situação, as demais pessoas nem sempre estão conscientes de nossa influência específica em suas vidas (quando desejamos algo em relação às mesmas). Frequentemente, se esta influência é percebida (e não corresponda a padrões de pensamento e comportamento que o indivíduo considere aceitáveis, ou seja: conforme seus egos), o pensamento é rejeitado, e muitas vezes reconhecido como que de origem externa. Ocorrendo esta rejeição, quem provocou o estímulo é considerado como o tentador (voltando à alusão aos demônios), não importando o quão agradáveis possam ter sido os efeitos enquanto eram meramente inconscientes. Daí se deduz que, neste tipo de situação, uma transformação que permanece fora do limiar da consciência pode ser mais eficaz do que alguma que se evidencie conscientemente.

Tudo se resume no contraste entre consciência e inconsciência. Eu, pessoalmente, sou parte do seu inconsciente (de você, leitor), assim como quase tudo o mais o é. Da mesma forma você é parte do meu inconsciente (assim como quase tudo o mais o é). O que nos impede de vermos isto claramente são nossos egos, os quais tendem a rejeitar tudo que lhes foge à compreensão. Na verdade, o que denominamos demônios é pura e simplesmente aquilo que não se encaixa em nossos estereótipos, incluindo aí nossas noções de moral, do bem e da religião (pois são conceitos que têm relação entre si). A moral deriva do que acreditamos ser o bem, da mesma forma que a religião tem a mesma derivação. Quanto à percepção que cada um tem a respeito da divindade, esta tende a alinhar-se da mesma forma.

O que em geral não se percebe é que a noção comum de bem e mal é baseada na distinção entre os seres (entre uma pessoa e outra, ou entre Deus e o Diabo em um escopo mais amplo), e não na comunhão entre tudo o que há (onde a divindade metamorfoseia-se em tudo, não existindo nada que não seja divino - veja o post Quando tudo é Divino: um Universo sem criador e sem criatura). Estas são percepções opostas e que acabam por provocar uma distorção na consciência do que é o bem (e o mal por extensão). Acabam também por distorcer nossos conceitos morais e, enfim, distorcem a noção da própria natureza da divindade. É precisamente esta distorção que leva à violência explícita (onde um fere o outro, ao invés de unir-se ao outro), da mesma forma que leva aos preconceitos raciais, ao machismo (e também a algumas formas negativas de feminismo, pois nem todas são negativas) e a diversas outras expressões de preconceito. Percebemos, assim, como “demoníaco” o que desafia nossa persistência no isolamento.

Afinal, porque nos parece tão perigoso quando alguém é capaz de perceber realmente o que pensamos ou o que pretendemos realizar? Certamente é porque vemos uns aos outros como que isolados, como em eterno conflito, competindo mutuamente. Desejamos muitas vezes sermos sinceros, mas não ousamos sê-lo.

Embora o contato com os demônios suscite em nós reações egóicas, certamente este não é o propósito destes seres. O objetivo real é que reconheçamos o que nos atrai, ao invés de o negarmos. Nossas necessidades não cessarão se jogarmos para debaixo do tapete o que não conseguimos aceitar em nós mesmos. Pelo contrário, apenas se tornarão mais intensas e falharemos, e nos confessaremos (nas religiões onde a prática se aplica), e falharemos de novo, e permaneceremos em um eterno ciclo onde nada essencialmente se transforma.